A Missa celebrada em latim é apropriada à nossa cultura?

INTRODUÇÃO

Este artigo busca responder à crítica posta de forma equivocada de que a Missa celebrada em latim não é apropriada à nossa cultura. Portanto, este texto não representa a defesa de que todas as Missas devam ser rezadas em Latim, mas, de que haja de modo freqüente, Missas na língua latina.
Evidente que seria impensado todas as Missas celebradas em latim porque isto, infelizmente, ainda é impossível graças à necessidade de intensa catequese e a não-aceitação imediata, que escandalizaria as pessoas, porém, isto longe de constituir motivo para que não se celebre de forma nenhuma em latim, é justamente o contrário: evidencia-se a necessidade de que haja, pelo menos, uma instância da Missa celebrada na língua latina, como um fator a mais de exposição da nossa verdadeira cultura, sem as falsas ideologias do que seria a cultura brasileira.
Mesmo com esta evidente necessidade cultural de nosso povo, existem os receosos ao uso da língua latina. O que se verifica é que, geralmente, os argumentos contrários ao uso do latim revelam receio e preconceitos, por falta de informação e não por má fé. Para responder à pergunta levantada no título deste artigo, vou refutar alguns destes argumentos comumente levantados pelos receosos à idéia de celebrar ao menos uma instância da Missa em língua latina, seja na Forma Ordinária ou Extraordinária do Rito Romano.

RECEIOS AO USO DA LINGUA LATINA: ARGUMENTOS E REFUTAÇÕES

O primeiro argumento colocado pelas pessoas contrárias à língua latina na liturgia seria o fato de a mesma ser uma “língua morta”. Longe de ser uma língua morta, ela é largamente usada nos ritos católicos ocidentais. O exemplo mais marcante são as Missas de caráter universal, celebradas pelos Papas desde sempre. Em geral, as Missas celebradas pelo Papa possuem partes em Latim, o que não significa que isso seja um obstáculo a se apreciar a Missa, na Forma Ordinária, diga-se de passagem.
Um exemplo é a famosa Missa da Noite de Natal, onde podemos apreciar pela TV a beleza do Canto Gregoriano e Polifônico, além da língua latina usada em todo o Ordinário da Missa, com exceção das leituras, o salmo e a Oração dos Fiéis. Menciona-se também o fato de que, em várias paróquias brasileiras, é rezada a Missa na Forma Extraordinária (Missa Tridentina, Antiga ou no Rito Dâmaso-Gregoriano), cujo Missal é obrigatoriamente em latim.
Inclusive, é digno de nota que a Constituição Conciliar Sacrossanctum Concilium, do Concílio Vaticano II nos admoesta que o latim deve ser conservado nas celebrações litúrgicas e que a língua vernácula é uma concessão
36. § 1. Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular.
§ 2. Dado, porém, que não raramente o uso da língua vulgar pode revestir-se de grande utilidade para o povo, quer na administração dos sacramentos, quer em outras partes da Liturgia, poderá conceder-se à língua vernácula lugar mais amplo, especialmente nas leituras e admonições, em algumas orações e cantos, segundo as normas estabelecidas para cada caso nos capítulos seguintes.
Constituição Conciliar Sacrossanctum Concilium, Concílio Vaticano II
Outro documento magisterial particularmente interessante sobre o uso do latim é a Constituição Apostólica Veterum Sapientia, de Sua Santidade João XXIII
11. § 2. [Bishops and superiors-general of religious orders] In the exercise of their paternal care they shall be on their guard lest anyone under their jurisdiction, eager for revolutionary changes, writes against the use of Latin in the teaching of the higher sacred studies or in the liturgy, or through prejudice makes light of the Holy Sees will in this regard or interprets it falsely.
Tradução (não oficial) 11. § 2. [Os Bispos e Superiores Gerais das Ordens religiosas], no exercício de paterna solicitude, deverão vigiar para que ninguem, em sua jurisdição, faminto de novidades, escreva contra o uso do latim no ensino das sagradas disciplinas e na sagrada Liturgia e, com opiniões preconceituosas, diminua a vontade da Sé Apostólica na matéria ou interprete-a erroneamente.
Constituição Apostólica Veterum Sapientia (em inglês)
Portanto, o latim é sim, uma língua viva na liturgia da Igreja. Outro argumento que depõe a favor do latim é que, por não ser uma língua usada na vida comum, não está suscetível à variação semântica das palavras, o que torna preciso os símbolos presentes na Missa, como auxílio na reta compreensão dos Santos Mistérios de acordo com a antiqüíssima Tradição Apostólica.

Um segundo argumento, comum, é de que o latim é difícil de se entender, dificultando o acesso das pessoas à compreensão da Missa. Isso não corresponde à realidade, pois é notório o fato de que, mesmo com a Missa celebrada em vernáculo, o reto conhecimento do que acontece na Missa não é satisfatório por causa da existência de vários abusos litúrgicos, como observado por Sua Santidade, João Paulo II, em sua Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia
10. …Num contexto eclesial ou outro, existem abusos que contribuem para obscurecer a reta fé e a doutrina católica acerca deste admirável sacramento. Às vezes transparece uma compreensão muito redutiva do mistério eucarístico. Despojado do seu valor sacrificial, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa. Além disso, a necessidade do sacerdócio ministerial, que assenta na sucessão apostólica, fica às vezes obscurecida, e a sacramentalidade da Eucaristia é reduzida à simples eficácia do anúncio...
Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia
o que torna particularmente preocupante o fato da perda progressiva da fé no sagrado Sacrifício da Missa por parte dos fiéis, como expresso por Mons. Albert M. Ranjith Patabendige, secretário da Cong. para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, na véspera da festa da Assunção da Santíssima Virgem em 2008, Maria Vesperbild, Bavaria
“Not infrequently we hear today of priests who, out of a lack of true faith and understanding, celebrate the Sacred Mysteries of the Eucharist in a manner which is unworthy of their heavenly augustness. Also many faithful have lost the sense for the sacredness of the Sacrifice of the Mass...”
Tradução (não oficial): ...De forma não infrequente, nós ouvimos hoje de padres que, revelando falta de verdadeira fé e entendimento, celebram os Sagrados Mistérios da Eucaristia de uma maneira que é indigna de sua celestial magnificência. Também muitos fiéis perderam o sentido da sacralidade do Sacríficio da Missa...
Fonte: New Liturgical Movement
Diante do exposto, se torna claro que a reta compreensão do que ocorre na Missa não está ligada a língua vernácula, e sim à boa catequese, que envolva a exposição clara da doutrina católica a respeito da Missa.

O terceiro e último argumento, com difusão mais intensa que os demais, é que a Missa em Latim é uma expressão da cultura européia, que não é ligada à nossa cultura ameríndia e africana, ou seja, de que ela definitivamente não faz parte de nossa cultura.
Fomos colonizados por Portugal, e evidentemente temos influências portuguesas em nossa cultura, além das influências ameríndias e africanas. Evidencia-se a segunda e a terceira e frequentemente rejeita-se a primeira, por conta, infelizmente, da nossa educação ideologizada que conceitua a catequese indígena como um processo de alienação e instrumento da luta de classes. Por causa da influência portuguesa marcante, nossa língua vernácula é o Português, e incrivelmente, não temos regiões grandes o suficiente que abrigam dialetos desta língua, apesar de nosso tamanho continental.
Portanto, como primeira resposta, posso afirmar que a língua portuguesa é uma expressão da nossa identidade nacional e o latim é a sua língua mãe. Isto torna o latim parte importante da nossa cultura.
Uma segunda resposta a este argumento é que a Igreja Católica, apesar de tudo que se diga ou invente na maioria de nossas escolas, com claro viés marxista-comunista, é um dos pilares da Civilização Ocidental, de que fazemos parte. E a língua latina, assim como a Missa, são tesouros da Igreja, e portanto, tesouros de nossa Civilização. É fato público e notório que a Igreja Católica fundou as Universidades e os Hospitais e que o Cristianismo é a base da nossa ética e moral. A Idade Média está longe de ser considerada uma época de trevas. Podemos dizer com efeito que as trevas começaram com a Idade das Luzes (com o Iluminismo), o que seria assunto para outro artigo.
Antes de fornecer uma terceira resposta, defenderei em algumas linhas a legitimidade do processo de catequese durante a colonização contra possíveis réplicas dos detratores da Igreja. A catequese nos trouxe a civilização, formou nossa cultura, que possui uma identidade própria. Apesar da repetição ad nauseam de que a Igreja endossou a escravidão e impôs a fé, “alienando o povo” neste processo, isto não corresponde à realidade dos fatos. Para constatar isto, basta citar a bula Veritas Ipsa, de 1537, sobre a catequese dos índios e de todas as gentes
“A mesma Verdade, que nem pode enganar, nem ser enganada, quando mandava os Pregadores de sua Fé a exercitar este ofício, sabemos que disse: 'Ide e ensinai a todas as gentes'. A todas [as gentes], disse, indiferentemente, porque todas [as gentes] são capazes de receber a doutrina de nossa Fé... Conhecendo que aqueles mesmos índios, como verdadeiros homens, não somente são capazes da Fé de Cristo, mas que acodem a ela, correndo com grandíssima prontidão segundo nos consta, e querendo prover nestas cousas de remédio conveniente, com autoridade apostólica, pelo teor das presentes, determinamos e declaramos que os ditos índios e todas as demais gentes que daqui em diante vierem à noticia dos cristãos, ainda que estejam fora da Fé de Cristo, não estão privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e não devem ser reduzidos à servidão; declarando que os ditos índios e as demais gentes hão de ser atraídas e convidadas à dita Fé de Cristo, com a pregação da Palavra divina e com o exemplo de boa vida...”
Bula Veritas Ipsa
A ordem jesuíta encontrou o Brasil na idade da pedra lascada e a grande maioria dos povos ameríndios não possuíam a escrita. É impossível contar a história da educação em nosso país, sem contar a história dos jesuítas no Brasil. A maior cidade do Brasil foi fundada pelos jesuítas: São Paulo. Os jesuítas fundaram escolas e faculdades, construíram estradas e estudaram os idiomas nativos de tal forma que pudesse ser passada a mensagem do Evangelho. Particularmente notável é a história do Padre José de Anchieta, que catequizou e educou os indígenas, e sofria de um grave problema de coluna. Nasceu em família rica e mesmo assim, veio em missão ao Novo Mundo.
O que me permite fazer a seguinte pergunta a qualquer detrator da memória dos jesuítas e da Igreja: Você estudaria teologia e filosofia 7 anos de sua vida, para terminá-la no meio das feras e dos índios que praticavam a antropofagia, em um lugar muito distante de sua terra natal?
O interesse na educação dos índios, apesar do que dizem os detratores, é evidenciado na questão religiosa onde os jesuítas foram expulsos do Brasil pelo Marquês de Pombal, por causa dos interesses da Coroa Portuguesa: os jesuítas no Brasil protegeram os índios contra os colonizadores que pretendiam escravizá-los.
Após defender o processo de catequese durante a colonização, passemos à terceira resposta a este argumento dos receosos ao latim na Missa. Esta Missa, junto com a catequese jesuíta, nos transformou na maior nação católica do mundo. A verdade é que Anchieta, Nóbrega e tantos outros foram heróis que nos trouxeram a civilização e nos trouxeram a Missa que hoje é a Forma Extraordinária do Rito Romano, celebrada em latim. Portanto, a Missa na Forma Extraordinária é parte importantíssima de nossa cultura porque foi parte do processo a que devemos o que somos hoje. A primeira Missa celebrada no Brasil foi esta Missa celebrada em latim, e contudo, isto não representou uma barreira à catequese por conta do resultado veemente que é a porcentagem de católicos em nosso pais.
A quarta resposta a este argumento é também uma resposta aos que acreditam que a catequese da Igreja foi uma forma de “genocídio cultural”, como se as culturas tivessem o mesmo valor, sem considerar que esta é uma noção marxista equivocada: as culturas não são igualmente boas e isto é a verdade factual.
Antes de se pensar que esta é uma afirmação fascista ou algo do gênero, lembremos que houveram culturas ameríndias que praticavam o sacrifício humano, como os astecas. Ainda há índios que sacrificam irmãos gêmeos nascidos nas tribos, na floresta amazônica, por acreditar que um deles é uma maldição. Isso sem mencionar a nossa cultura atual, modificada pelo Iluminismo, responsável pelo aborto, que não é nada menos que o assassinato de inocentes. Tendo em vista estes contra-exemplos que mostram a desvalorização da individualidade humana, posso enunciar que a afirmação de que todas as culturas têm o mesmo valor é falsa, o que impossibilita conceituar genocídio cultural.
Podemos continuar, após demonstrar a incoerência no conceito de genocídio cultural através da catequese, deixando clara a relação entre a Igreja e as culturas. O papel da Igreja, por não estar ligada a uma cultura específica, pela Sua Universalidade e pela Sua Missão de levar o Evangelho aos povos, é inserir a verdade evangélica nas culturas, fazendo-as respeitar a verdadeira dignidade humana, corrigindo-as em seus defeitos e conservando o há de bom nelas, como expresso pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II e constatado pelo fato de que o Evangelho é o fundamento de nossa ética e moral
41. ...Apoiada nesta fé, a Igreja pode subtrair a dignidade da natureza humana a quaisquer flutuações de opiniões, por exemplo, as que rebaixam exageradamente o corpo humano ou, pelo contrário, o exaltam sem medida. Nenhuma lei humana pode salvaguardar tão perfeitamente a dignidade pessoal e a liberdade do homem como o Evangelho de Cristo, confiado à Igreja. Pois este Evangelho anuncia e proclama a liberdade dos filhos de Deus; rejeita toda a espécie de servidão, a qual tem a sua última origem no pecado...
42 ...Além disso, dado que a Igreja não está ligada, por força da sua missão e natureza, a nenhuma forma particular de cultura ou sistema político, econômico ou social, pode, graças a esta sua universalidade, constituir um laço muito estreito entre as diversas comunidades e nações, contanto que nela confiem e lhe reconheçam a verdadeira liberdade para cumprir esta sua missão...
44. ...A experiência dos séculos passados, os progressos científicos, os tesouros encerrados nas várias formas de cultura humana, os quais manifestam mais plenamente a natureza do homem e abrem novos caminhos para a verdade, aproveitam igualmente à Igreja. Ela aprendeu, desde o começo da sua história, a formular a mensagem de Cristo por meio dos conceitos e línguas dos diversos povos, e procurou ilustrá-la com o saber filosófico...
Constituição Pastoral Gaudium et Spes, Concílio Vaticano II
Pela Igreja não ser ligada a uma cultura específica e lembrando que a Missa na Forma Extraordinária ou a Missa na Forma Ordinária em Latim são partes do “Fidei Depositium”, salvaguardadas na Tradição da Igreja Católica e herdadas do Evangelho, posso afirmar que a Missa celebrada em latim é tão parte da nossa cultura, como da cultura européia ou de qualquer outra, pois faz parte da Igreja.

CONCLUSÃO

Após elucidar as duvidas e inquietações sobre a Missa celebrada em latim, me despeço tomando como minhas as palavras do Santo Padre na carta aos bispos que acompanha o Motu proprio Summorum Pontificum
...aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial...
Carta aos Bispos que acompanha o Motu proprio Summorum Pontificum
Para os católicos é lógico que devemos amar a tudo que vem da Santa Igreja. Pois que sejamos bons católicos e escutemos o Papa: que devotemos o amor a Missa em ambas as formas do Rito Romano e não tenhamos receio da língua latina, porque são tesouros da Igreja.

Tayroni Alves – Membro da ARS

Comentários

  1. Olá, pessoal, segue o link da Santa Missa em Araioses.

    http://arenadateologia.blogspot.com/2010/04/poetico-relato-do-retorno-da-santa.html


    Claudiomar

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