Semana Santa na Jerusalém do séc. IV - da Quinta-feira Santa até as primeiras horas da Sexta-feira Santa

Pax et bonum!

Dentro de algumas horas entraremos no Sacro Tríduo Pascal.
Continuando o testemunho da peregrina cristã Etéria, do séc. IV, vejamos como os cristãos viviam a Quinta-feira Santa em Jerusalém.
Anime-nos isto para bem celebrarmos o grande mistério pascal do Senhor, pelo qual se opera a nossa salvação.

XXXV
1. [Quinta-Feira Santa] Também na quinta-feira se conduzem as práticas a partir do primeiro canto do galo [pelo meio da noite, provavelmente por volta das 3h], como sempre, até de manhã, na Anástasis [lugar onde fica o sepulcro propriamente dito], e também na terceira hora (=9h) e na sexta (=12h). E, à oitava hora (=14h), segundo o costume, reúne-se todo o povo no Martyrium [a grande igreja atrás do Gólgota], um pouco mais cedo [13h?], aliás, porque é preciso que o ofício termine mais rapidamente; reunido o povo todo, faz-se o que deve ser feito. A Oblação é, nesse dia, oferecida no Martyrium e aí mesmo termina o culto, mais ou menos à décima hora (=16h). Antes, porém, de dispensar o povo, diz o diácono: "À primeira hora da noite (=18h), venhamos todos juntos à igreja do Eleona [Monte das Oliveiras], visto que hoje à noite nos espera a maior fadiga".
2. Assim, pois, uma vez terminado o ofício no Martyrium, voltam ao post Crucem [uma pequena capela atrás do Gólgota], recitam aí um só hino, fazem uma prece, oferece o bispo a Oblação e todos comungam. Na verdade, exceto nesse único dia, durante todo o ano, jamais se consagra no post Crucem; nunca, a não ser nesse único dia. Terminada, pois, aí, a cerimônia, entra-se na Anástasis, faz-se uma prece, abençoam-se, segundo o costume, os catecúmenos assim como os fiéis e termina o ofício. Cada um se apressa a voltar à sua casa a fim de comer, porque assim que tenham comido, vão todos ao Eleona, à igreja na qual há a gruta onde esteve o Senhor com os seus apóstolos, nesse dia.
3. E aí, até mais ou menos à quinta hora da noite (=23h), permanecem recitando hinos ou antífonas concernentes ao dia e ao local, e também leituras, intercalando orações; lêem-se também os passos do Evangelho nos quais o Senhor fala com os seus discípulos nesse mesmo dia, sentado nessa mesma gruta que aí há, nessa igreja.
4. E daí, já na sexta hora da noite aproximadamente (=0h), sobem ao Imbomon [lugar da Ascensão] entoando hinos, ao lugar do qual o Senhor subiu aos céus. E aí, novamente, recitam leituras, hinos e antífonas concernentes ao dia; e também quaisquer orações que rezem, ou que pronuncie o bispo, são sempre apropriadas ao dia e ao lugar.

XXXVI
1. [Sexta-Feira Santa. O Santo Lenho] Assim, pois, ao ter início o canto dos galos, descem do Imbomon, entoando hinos, e se aproximam do lugar onde o Senhor rezou, como está escrito no Evangelho: "E se aproximou à distância de um arremesso de pedra e orou" etc. [Lc 22,41]; e há nesse local uma bela igreja. Entra o bispo e com ele todo o povo, rezam uma oração condizente com o lugar e o dia, recitam aí também um hino adequado e lêem o trecho do Evangelho em que o Senhor diz aos seus discípulos: "Vigiai para que não entreis em tentação" [Mc 14,38]; e todo esse passo é lido e se ergue uma nova prece.
2. Logo, entoando cânticos, descem com o bispo, até mesmo a menor das crianças, a pé, até o Getsêmani [o horto das oliveiras]; por causa da grande afluência de gente cansada pelas vigílias e esgotada pelos jejuns cotidianos, e porque há um monte muito alto que é preciso descer, seguem passo a passo, entoando hinos, em direção ao Getsêmani. E mais de duzentos círios de igreja iluminam o povo.
3. Chegando ao Getsêmani, dizem inicialmente uma oração apropriada e recitam um hino; lêem também o passo do Evangelho no qual é preso o Senhor. Mal termina a leitura, tão grande é o clamor e o gemido de todo o povo, chorando, que, ao longe, na cidade talvez, é ouvido o lamento de todo esse povo. Após o que, entoando hinos, voltam à cidade a pé, e chegam às suas portas no momento em que cada homem começa a reconhecer os outros homens; desde esse instante, todos, sem exceção, maiores e menores, ricos e pobres, todos se encontram presentes na cidade; de maneira muito especial, ninguém, nesse dia, abandona as vigílias, até de manhã. E acompanham o bispo do Getsêmani até a porta e daí por toda a cidade, até a Crux.

Algumas observações
O Monte das Oliveiras nos remete a vários episódios da vida de nosso Senhor, como algumas pregações, a agonia no horto (o Getsêmani) na noite da Quinta-feira, e a Ascensão ao Céu, quarenta dias após a Ressurreição.
O fervor e a perseverança destes cristãos na oração é de nos fazer enrubescer. De fato, eles não pareciam ser dignos da repreensão de nosso Senhor, pois oravam e vigiavam longamente.
Hoje em dia, da noite da Quinta para a Sexta-feira Santa, nosso Getsêmani é a capela ou o altar da reposição, para onde o Santíssimo Sacramento será levado ao canto do Pange, lingua, gloriosi de São Tomás de Aquino (séc. XIII, não confundir com o outro hino, de mesmo nome, de Venâncio Fortunato).
Seja na oração até tarde da noite (mesmo em casa), seja em vigília e adoração por toda a noite (na igreja), seja pela dolorosa meditação da solidão do Senhor no horto e na prisão, a noite de hoje para amanhã também nos cabe como "a maior fadiga".
As duas Missas de Jerusalém, a primeira na igreja maior (Martyrium), terminando por volta das 16h, e outra logo em seguida, no post Crucem, provavelmente não tinham tanto o sentido das duas Missas que hoje existem: uma pela manhã (a Missa Crismal, que foi instituída por Pio XII em 1955, com a consagração dos santos óleos e a renovação das promessas sacerdotais de todos os presbíteros) e a outra às vésperas (Missa Vespertina da Ceia do Senhor, com o lava-pés, também restaurada por Pio XII).
Na Igreja de Roma o dia de hoje foi designado por vários nomes:
Redditio Symboli: pois nesse dias os catecúmenos teriam que recitar o Credo de memória, na presença do bispo ou de um representante seu.
Pedilavium (ou, como atualmente, lotio pedum): originado provavelmente como cerimônia ligada ao Batismo, ocorria em mosteiros e catedrais, mas não primeiramente ligado à liturgia. Este lava-pés ("Mandatum") está presente no Missal Romano Pio-Beneditino (antes de 1955), prescrito para depois da Missa da Ceia do Senhor, somente para os clérigos, após a denudação do altar. Foi restaurado como rito dentro da Missa em 1955, por Pio XII. Recorda-se que as doze pessoas escolhidas para o lava-pés são, obrigatoriamente, homens.
Exomologesis: pois neste dia fazia-se a reconciliação dos penitentes em Roma, pelo menos desde o séc. V.
Olei exorcizati confectio: pois neste dia fazia-se a consagração do Crisma necessário para a unção dos catecúmenos que seriam batizados. Este rito foi reinstituído em 1955, com Missa própria, por Pio XII. Deve acontecer na manhã da Quinta-feira Santa. Na Arquidiocese de Teresina é celebrada na noite da Segunda-feira Santa.
Anniversarium Eucharistiæ: das duas Missas em Jerusalém, passou-se a uma apenas, em Roma, no séc. VII, pela manhã. Esta, porém, tinha já o sentido da ceia do Senhor e da instituição do Santíssimo Sacramento. Como já dito, passou a ser vespertina na Reforma da Semana Santa ocorrida em meados do séc. XX, sob Pio XII.

Iniciemos, daqui a poucas horas, o Sacro Tríduo Pascal, com amor e tremor.
Louvado seja o Santíssimo Sacramento!
Deus nos abençoe.

Por Luís Augusto - membro da ARS

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