"Católico(a)" - Parte 1

Pax et bonum!

Ainda com a mente no Ano da Fé, e aproveitando a tradução anterior sobre o Símbolo Apostólico, poderíamos postar pormenores sobre todos os artigos do Credo, e de fato podemos fazer algo neste sentido. Todavia, gostaria de me deter no termo "Católico", aproveitando que a postagem anterior mostra que tal termo não consta no que se tem considerado como antiga forma romana do Credo. Alguém poderia questionar, portanto, o uso do termo, e outras pessoas poderiam desejar aprofundar-se no que significou e significa o nome "católico".
Para isto, segue mais uma tradução de artigo da Catholic Encyclopedia, que achei por bem dividir em duas partes.
Boa leitura!

***
Última página do Fragmento de Muratori (ano 180 aproximadamente),
em que se encontra a palavra "católica" (catholicam/catholica) relacionada à Igreja de Cristo (linhas 4 e 7)

A palavra católico(a) (katholikos, de katholou — que passa pelo todo, isto é, universal) ocorre em clássicos gregos como, por exemplo, em Aristóteles e Políbio, e era livremente usada pelos antigos escritores cristãos naquilo que podemos chamar de seu sentido primitivo e não-eclesiástico. Assim encontramos certas frases como "a ressurreição católica" (Justino Mártir), "a bondade católica de Deus" (Tertuliano), "os quatro ventos católicos" (Irineu), onde poderíamos falar de "a ressurreição geral", "a bondade absoluta ou universal de Deus", "os quatro ventos principais", etc. A palavra, usada assim, parece ser oposta a merikos (parcial) ou idios (particular), e um exemplo familiar desta concepção ainda permanece na antiga expressão "cartas católicas" aplicada àquelas de São Pedro, São Judas, etc., que foram assim chamadas por serem endereçadas não a alguma comunidade local particular, mas à Igreja toda.
A combinação "a Igreja Católica" (he katholike ekklesia) é encontrada pela primeira vez na carta de Santo Inácio aos cristãos de Esmirna, escrita por volta do ano 110. As palavras ocorrem aqui: "Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade, assim como a presença de Cristo Jesus também nos assegura a presença da Igreja universal (katholike)". Todavia, tendo em vistas o contexto, alguma diferença de opinião prevalece  quanto à precisa conotação da palavra em itálico, e Kattenbusch, o professor protestante de teologia de Giessen, está preparado para interpretar esta mais antiga ocorrência da expressão no sentido de mia mone, a Igreja "una e única" [Das apostolische Symbolum (1900), II, 922]. Doravante, o significado técnico da palavra católica encontra-nos com frequência crescente tanto no Oriente quanto no Ocidente, até por volta do início do séc. IV parecer ter quase totalmente suplantado o significado primitivo e mais geral. Os exemplos mais antigos foram reunidos por Caspari (Quellen zur Geschichte des Taufsymbols, etc., III, 149 sqq.). Vários deles ainda admitem o significado de "universal". A referência (+- 155) ao "bispo da igreja católica em Esmirna" (Carta sobre o Martírio de São Policarpo, xvi), uma frase que necessariamente pressupõe um uso mais técnico da palavra, deve-se, pensam alguns críticos, à interpolação [N.T.: inserção de algo que não é originário do autor]. Por outro lado, este sentido ocorre sem dúvida mais de uma vez no Fragmento de Muratori (+- 180), onde, por exemplo, é dito sobre certo escritos heréticos que "não podem ser recebidos na Igreja católica". Um pouco depois, Clemente de Alexandria fala muito claramente. "Nós dizemos", declara ele, "que tanto na substância como na aparência, tanto na origem como em seu desenvolvimento, a igreja primitiva e católica é a única, concordando como assim o faz na unidade de uma fé" (Stromata, VII, xvii; P.G., IX, 552). Desta e de outras passagens que podem ser citadas, o uso técnico parece claramente se estabelecido pelo início do séc. III. Neste sentido da palavra, implica-se a sã doutrina como oposta à heresia e a unidade de organização como oposta ao cisma (Lightfoot, Apostolic Fathers, Part II, vol. I, 414 sqq. e 621 sqq.; II, 310-312). De fato, católica logo se tornaria em muitos casos um simples apelativo - o nome próprio, em outras palavras, da verdadeira Igreja fundada por Cristo, assim como frequentemente falamos da Igreja Ortodoxa, quando nos referimos à religião estabelecida pelo Império Russo, sem nos darmos conta da etimologia do título usado. Foi provavelmente neste sentido que Paciano, o espanhol (Ep. i ad Sempron.) escreve, por volta de 370: "Christianus mihi nonem est, catholicus cognomen", e é digno de nota que em várias exposições latinas do Credo, notadamente a de Niceta de Remesiana, que data aproximadamente do ano 375 (ed. Burn, 1905, p. lxx), a palavra Católica no Credo, embora sem dúvida unida nesta data às palavras Santa Igreja, não sugere nenhum comentário especial. Até em São Cipriano (+- 252) é difícil determinar até onde ele usa a palavra Católica significativamente, e até onde usa como um mero nome. O título, por exemplo, de sua maior obra é "Sobre a unidade da Igreja Católica", e frequentemente nos deparamos em seus escritos com expressões tais como catholica fides (Ep. xxv; ed. Hartel, II, 538); catholica unitas (Ep. xxv, p. 600); catholica regula (Ep. lxx, p. 767), etc. A única ideia clara subjacente a todas é ortodoxa como oposta a herética, e Kattenbusch não hesita em admitir que em Cipriano vemos pela primeira vez como católica e romana vêm eventualmente a ser referidas como termos intercambiáveis [N.T. ou seja, praticamente como sinônimos] (Cf. Harnack, Dogmengeschichte, II, 149-168.). Ademais, dever-se-ia notar que a palavra Catholica [sozinha] foi às vezes utilizada concretamente como equivalente de ecclesia Catholica. Um exemplo encontra-se no Fragmento de Muratori, outro aparentemente em Tertuliano (De Praescrip, xxx), e vários mais aparecem em data posterior, particularmente entre os escritores africanos.
Entre os gregos era natural que, enquanto católica servia como descrição distintiva da única Igreja, o significado etimológico da palavra não se perdesse de vista. Assim, nos "Discursos Catequéticos" de São Cirilo de Jerusalém (+- 347), ele insiste por um lado (sect. 26): "E mesmo se estiveres de passagem nalguma cidade, pergunta não simplesmente onde está a casa do Senhor - pois as seitas dos profanos também tentam chamar suas próprias tocas de casas do Senhor - nem meramente onde está a igreja, mas onde está a Igreja Católica. Pois este é o nome peculiar do Santo Corpo, a mãe de todos nós". Por outro lado, ao discutir a palavra católica, que já aparece na sua fórmula do credo batismal, São Cirilo observa: (sect. 23) "Agora ela [a Igreja] é chamada de Católica porque está presente no mundo inteiro, de um canto a outro da terra". Mas teremos ocasião de citar esta passagem mais demoradamente à frente.
Não pode restar dúvida, todavia, que foi o debate com os Donatistas que primeiro extraiu o significado teológico completo do epíteto católica e que o passou aos escolásticos como posse permanente. Quando os Donatistas disseram representar a única verdadeira Igreja de Cristo, e formularam certas características da Igreja, que eles professavam encontrar em seu próprio grupo, eles não deixariam de atacar seus oponentes ortodoxos que diziam que o título Católica, pelo qual a Igreja de Cristo era universalmente conhecida, fornecia uma prova muito mais certa, e que era totalmente inaplicável a uma seita confinada a um pequeno canto do mundo. Os Donatistas, ao contrário de todos os hereges anteriores, não erravam em nenhum questão cristológica. Era a sua concepção de disciplina e organização da Igreja que era defeituosa. Daqui, na refutação a eles, uma teoria mais ou menos definida sobre a Igreja e suas características foi desenvolvida por São Optato (+- 370) e Santo Agostinho (+- 400). Estes doutores insistiram particularmente na nota da Catolicidade, e indicaram que tanto o Antigo quanto o Novo Testamento representaram a Igreja como espalhada por toda a terra (veja-se Turmel, Histoire de la theologie positive, 1904, I, 162-166, com as referências lá dadas). Além disso, Santo Agostinho insiste no consenso dos cristãos quanto ao uso do nome Católica. "Queiram ou não", diz ele, "os hereges têm que chamar a Igreja Católica de Católica" ("De vera religione", xii). "Embora todos os hereges queiram ser denominados católicos, ainda que alguém perguntasse onde está o lugar católico de culto, nenhum deles arriscaria apontar para seu próprio conventículo" (Contra Epistolam quam vocant Fundamenti, iv). Dos expoentes posteriores da mesma tese, o mais famoso é Vicente de Lérins (+- 434). Seu cânon de catolicidade é "Aquilo que foi acreditado em todo lugar, sempre e por todos". "Isto", acrescenta, "é aquilo que verdadeira e apropriadamente é católico" (Commonitorium, I, ii).
Embora a crença na "Santa Igreja" tenha sido incluída na forma mais antiga do Credo Romano, a palavra católica não parece ter sido posta no Credo em nenhum lugar do Ocidente até o séc. IV. Kattenbusch acredita que nossa forma existente encontra-se primeiramente dentro da "Exhortatio" que ele atribui a Gregório de Elvira (+- 360). É possível, todavia, que o credo recentemente impresso por Dom Morin (Revue Bénédictine, 1904, p. 3) seja de data ainda mais antiga. Em todo caso, a frase "a santa Igreja Católica" aparece na forma comentada por Niceta de Remesiana (+- 375). Quanto ao uso moderno da palavra, católica romana é a designação empregada nos atos legislativos da Inglaterra Protestante, mas Católica é que é usada ordinariamente no continente europeu, especialmente nos países latinos. De fato, historiadores de todas as escolas, ao menos por conta da brevidade, frequentemente contrastam Católico e Protestante, sem nenhuma outra qualificação. Na Inglaterra, desde o séc. XVI, protestos indignados têm sido feitos constantemente contra "a usurpação exclusiva e arrogante" do nome Católica pela Igreja de Roma. O Arquidiácono Philpot, protestante, que foi condenado à morte em 1555, foi tido como bastante obstinado neste ponto (veja-se a edição de suas obras publicadas pela Parker Society); e dentre outras várias controvérsias similares posteriores pode-se citar aquela entre Dr. [William] Bishop, depois vigário apostólico, e Dr. [Robert] Abbot, depois Bispo [anglicano] de Salisbury, sobre a "Catholicke Deformed", que durou de 1599 a 1614. De acordo com alguns, tais expressões como Católico Romano, ou Anglo-Católico, trazem uma contradição nos termos (veja-se o Bispo Anglicano de Carlisle em "The Hibbert Journal", Janeiro, 1908, p. 287.) Perto do ano 1580, ao lado do termo papista, empregado com intenção infamante, os seguidores da antiga religião foram frequentemente chamados de Romanistas ou Católicos Romanos. Sir William Harbert, em 1585, publicou uma "Carta a um Romano pretensamente Católico", e em 1587 um livro italiano de G.B. Aurellio foi impresso em Londres e dizia respeito às diferenças doutrinas "dei Protestanti veri e Cattolici Romani". Os católicos nunca pareceram ser contra tal apelativo, mas eles mesmos o utilizaram algumas vezes. Por outro lado, escritores protestantes frequentemente descreveram seus oponentes simplesmente como "Católicos". Um notável exemplo é o "Pseudomartyr" de Dr. John Donne, impresso em 1610. Ademais, levando em conta apenas a brevidade, certas questões polêmicas como a "Emancipação Católica" [N.T.: a respeito das restrições impostas pela lei aos católicos na Inglaterra] têm sido comumente discutidas por ambos os lados sem nenhum prefixo qualificativo. Relacionado a este assunto, podemos chamar a atenção a uma visão anglicana comum representada numa obra popular de referência, como o "Church Dictionary" de Hook (1854), onde se vê em "Católico" - "Que o membro da Igreja da Inglaterra afirme seu direito ao nome de Católico, já que somente ele tem direito a este nome na Inglaterra. O Romanista inglês  é um cismático romano e não um católico". A ideia é ainda mais desenvolvida no "Dictionary of Sects and Heresies" de Blunt (1874), onde "Católicos romanos" são descritos como "uma seita organizada pelos Jesuítas dentre os escoceses fiéis à Rainha Mary Stuart no reinado da Rainha Elizabeth". Uma visão mais antiga e menos extrema será encontrada nos "Essays Critical and Historical" de Newman [N.T. que se converteu à Igreja Católica e beatificado em 2010], publicados por ele quando ainda anglicano (ver No. 9, "The Catholicity of the Anglican Church"). A própria nota do Cardeal sobre este ensaio, na última edição revisada, pode ser lida com proveito.

Fonte: Thurston, Herbert. "Catholic." The Catholic Encyclopedia. Vol. 3. New York: Robert Appleton Company, 1908. Disponível em http://www.newadvent.org/cathen/03449a.htm.

Por Luís Augusto - membro da ARS

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