"Católico(a)" - Parte 2

Pax et bonum!

Continuando com nossa tradução do artigo da Catholic Encyclopedia, segue a segunda parte.
Boa leitura!

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Consideramos longamente apenas a história e o significado do nome Católico(a). Voltamos agora para sua importância teológica, como tem sido enfatizada e formalizada pelos últimos teólogos. Sem dúvida a enumeração de quatro precisas "notas" pelas quais a Igreja se separa das seitas é de desenvolvimento comparativamente recente, mas a concepção de tais provas externas, como falado antes, baseia-se na linguagem de Santo Agostinho, São Optato e outros, em suas controvérsias com os hereges de seus tempos. Numa famosa passagem do tratado de Santo Agostinho "Contra Epistolam quam vocant Fundamenti", contra os donatistas, o santo doutor declara que, ao lado da intrínseca aceitabilidade da doutrina [da Igreja], "há várias outras coisas que mais justamente me mantêm no seio da Igreja", e depois de indicar a concordância na fé entre seus membros, ou, como diríamos, sua Unidade, bem como "a sucessão de sacerdotes desde a instalação de Pedro Apóstolo, a quem nosso Senhor, depois de sua ressurreição, confiou seu rebanho para ser apascentado, até o presente episcopado", em outras palavras a qualidade que chamamos de Apostolicidade, Santo Agostinho continua numa passagem previamente citada em parte: "Por último, prende-me o próprio nome de Católico que não sem razão tão estreitamente se atribui à Igreja no meio de todos os hereges que a rodeiam, de modo que embora todos os hereges queiram ser chamados de católicos, se um estranho perguntasse onde se celebra o culto católico, nenhum desses hereges ousaria apontar para seu próprio conventículo" (Corpus Scrip. Eccles. Lat., XXV, Pt. I, 196). Foi muito natural que a situação criada pelas controvérsias do séc. XVI levassem a uma determinação mais exata dessas "notas". Teólogos [católicos] ingleses como [Thomas] Stapleton (Principiorum Fidei Doctrinalium Demonstratio, Bk. IV, cc. iii sqq.) e [Nicholas] Sander (De Visibili Monarchia, Bk. VIII, cap. xl) foram dos principais em levantar este aspecto da questão entre as Igrejas, e acadêmicos estrangeiros como [São Roberto] Belarmino, que tomou parte nos mesmo debates, prontamente se afinou a partir deles. Sander distinguia seis prerrogativas da Igreja instituída por Cristo. Stapleton reconhecia dois atributos primários como contidos nas promessas de Cristo - a saber, universalidade no espaço e perpetuidade no tempo - e destes ele deduziu as outras características visíveis. Belarmino, começando pelo nome Católica, enumerou quatorze outras qualidades verificadas na história externa da instituição que levava esse nome (De Conciliis, Bk. IV, cap. iii). Em todos esses esquemas variados, deve-se enfatizar, a universalidade da Igreja teve lugar de destaque dentre suas características distintivas. Todavia, ainda no séc. XV o teólogo Juan de Torquemada [cardeal espanhol, dominicano] estabeleceu as notas da Igreja como sendo quatro, e este esquema mais simples, baseando-se nas palavras do familiar Credo da Missa [o Niceno-constantinopolitano] (Et unam, sanctam, catholicam et apostolicam Ecclesiam), eventualmente logrou aceitação universal. Foi adotado, por exemplo, no "Catechismus ad Parochos" [N.T.: o chamado "Catecismo Romano"], que foi elaborado e publicado em 1566, conforme um decreto do Concílio de Trento, com a mais alta sanção oficial. Neste documento oficial nós lemos:
"O terceiro caráter da Igreja é ser católica, quer dizer, universal. Assenta-lhe bem a designação, porque 'os fulgores de uma só fé', como diz Santo Agostinho, 'se vão dilatando desde o Oriente até ao Ocidente'.
[A Igreja] não se circunscreve aos limites de um só país, nem a uma só raça determinada, como acontece nas instituições políticas e nas agremiações heréticas. Abrange, pelo contrário, todos os homens no regaço de seu amor, sejam bárbaros ou citas, livres ou escravos, homens ou mulheres".
Confirmando isto, várias vozes proféticas da Sagrada Escritura são citadas, depois das quais o Catecismo prossegue: "De mais a mais, enquanto professam a fé verdadeira, todos os crentes que existiram desde Adão até hoje, ou que hão de existir até o fim do mundo, pertencem à mesma Igreja que 'foi edificada sobre o fundamento dos Apóstolos e dos Profetas'. Todos foram postos e firmados naquela pedra angular, Cristo, que 'congraçou numa só as duas partes', e 'anunciou a paz aos que estavam perto, e aos que estavam longe'.
A Igreja chama-se também universal, porquanto os que desejam a salvação eterna, devem todos professá-la, e prestar-lhe obediência, assim como os que deviam entrar na Arca, para não perecerem nas águas do Dilúvio.
Por conseguinte, esta é uma nota que devemos apresentar como muito segura, para se distinguir a Igreja verdadeira de [qualquer outra] igreja falsa".
Esta apresentação múltipla e um tanto confusa da nota da catolicidade sem dúvida encontra sua garantia na interpretação igualmente difundida de alguns dos antigos Padres. Assim, por exemplo, São Cirilo de Jerusalém diz: "A Igreja chama-se católica porque está espalhada por todo o mundo [isto é, o mundo habitado, oikoumenes] de um canto a outro da terra, e porque ela ensina universalmente e sem mutilação todas as verdades que devem ser conhecidas pelos homens, quer se refiram às coisas visíveis ou às invisíveis, celestes ou terrenas; ainda mais porque ela traz sob o jugo do serviço do Deus verdadeiro todas as raças de homens, os poderosos e os humildes, os letrados e os simples; e finalmente porque ela cuida e cura todo tipo de pecado cometido pelo corpo ou pela alma e porque não há forma de virtude, seja em palavra, feito ou dons espirituais de qualquer tipo, que ela não possua como coisa dela mesma" (Cateches., xviii, 23; P.G., XXXIII, 1043). Em termos similares fala Santo Isidoro (De Offic., Bk. I), dentre os Padres do Ocidente, e também uma variedade de outras explicações, sem dúvida, poderia ser usada como argumento.
Mas de todas essas várias interpretações, que, depois de tudo, não são inconsistentes entre si, e que são provavelmente apenas característica de um estilo de exegese que se agradava na multiplicidade, uma concepção de catolicidade é quase invariavelmente proeminente. Trata-se da ideia da atual difusão local da Igreja, e é o aspecto sobre o qual, indubitavelmente graças à influência da controvérsia protestante, mais se tem insistido pelos teólogos nos últimos três séculos. Alguns professores hereges e cismáticos têm praticamente se recusado a reconhecer a Catolicidade como um atributo essencial da Igreja de Cristo, e na versão luterana do Credo dos Apóstolos, por exemplo, a palavra católica ("A santa Igreja católica") é substituída por cristã. Mas na maioria das profissões de fé protestantes a palavra do original foi mantida, e os representantes desses vários tons de opinião têm se esforçado para encontrar interpretações da frase, que de algum modo sejam conforme a fatos históricos e geográficos. A maioria, incluindo a maior parte dos teólogos anglicanos mais antigos (por exemplo, Pearson sobre o Credo), têm se contentado em insistir na forma ou maneira dada ao desígnio do Fundador da Igreja, de que seu Evangelho deveria ser pregado por todo o mundo. Esta difusão de jure serve suficientemente para seu propósito como justificativa para a retenção da palavra Católica no Credo, mas os que apoiam este ponto de vista precisam admitir que a Catolicidade assim compreendida não pode servir como critério visível pelo qual a Igreja verdadeira se distingue das seitas cismáticas. Aqueles grupos protestantes que não rejeitam completamente a ideia das "notas" ou características distintivas da Igreja verdadeira consequentemente focam na pregação honesta da Palavra de Deus e na administração regular dos sacramentos como único critério (veja-se a "Confession of Augsburg", Art. 7, etc.). Mas tais notas como estas, que poderiam ser reclamadas por vários grupos religiosos diferentes com direito aparentemente igual, são praticamente inoperantes, e, como polemistas católicos têm comumente indicado, a questão somente se resolve na discussão da natureza da Unidade da Igreja sob outra forma. O mesmo se diga daquele grande conjunto de professores protestantes que olham para todas as comunhões sinceras de cristãos como ramos da única Igreja Católica, tendo a Cristo por cabeça invisível. Tomados coletivamente, esses vários ramos reivindicam a difusão pelo mundo de facto bem como de jure. Mas claramente, a questão primariamente envolvida aqui é a que diz respeito à Unidade da Igreja. (...)
Contra estas e outras interpretações que prevaleceram entre os protestantes desde a Reforma até tempos bem recentes, os teólogos escolásticos dos últimos três séculos acostumaram-se a promover a concepção da nota da Catolicidade em várias proposições formais, das quais os elementos mais essenciais são os seguintes. A verdadeira Igreja de Cristo, tal como revelado a nós na profecia, no Novo Testamento e nos escritos dos Padres dos primeiros seis séculos, é um corpo que possui a prerrogativa da Catolicidade, isto é, de uma difusão geral, não apenas em matéria de direito, mas de fato atual. Ademais, esta difusão não é apenas sucessiva - isto é, que uma após outra parte do mundo, no decorrer das eras, seja posto em contato com o Evangelho - mas tal que a Igreja pode ser permanentemente descrita como espalhada pelo mundo. Além disso, como esta difusão geral é uma propriedade que nenhuma outra associação cristã pode justamente reivindicar, podemos dizer que a Catolicidade é uma marca distintiva da verdadeira Igreja de Cristo.
Daqui se verá que o ponto sobre o qual se insiste é a atual difusão local, e dificilmente se poderá negar que tanto os argumentos bíblicos como patrísticos apresentados por Belarmino, Thomassin, Alexander Natalis, Nicole, e outros, para citar apenas alguns dos nomes mais proeminentes, proporcionam uma forte justificativa. O argumento bíblico parece ter sido primeiramente desenvolvido por São Optato de Mileve, contra os donatistas, e foi igualmente empregado por Santo Agostinho quando ele entrou na mesma polêmica poucos anos depois. Aduzindo um grande número de passagens dos Salmos (por exemplo, Sl 2 e 71), de Daniel (Cap. 2), Isaías (ex. 54,3) e outros escritores proféticos, os Padres e também os teólogos modernos chamam a atenção para a imagem pintada do Reino de Cristo, o Messias, como algo gloriosa e  ostensivamente espalhado por todo o mundo, por exemplo: "Eu te darei as gentes como herança e os confins da terra como possessão", "Ele reinará de mar a mar", "Todas as nações hão de servi-lo", etc., etc. Além do mais, junto a estas temos que observar as instruções e promessas de nosso Senhor: "Ide, pois, e ensinai a todas as nações" (Mt 28,19), "E sereis minhas testemunhas... até os confins da terra" (At 1,8), ou as palavras de São Paulo citando o Salmo 18, "Claro que sim! Por toda a terra correu a sua voz, e até os confins do mundo foram as suas palavras" (Rm 10,18), etc. Mas a força real do argumento está na evidência patrística, dado que palavras da Escritura como estas acima são citadas e interpretadas, não por um ou dois apenas, mas por um grande número de diferentes Padres, tanto no Oriente como no Ocidente, e praticamente sempre em termos tais que estão de acordo com a atual difusão por todas as regiões que representavam, moralmente falando, o mundo inteiro. É, deveras, particularmente importante notar que em várias  das passagens patrísticas, o escritor, enquanto insiste na extensão local da Igreja, manifestamente implica que esta difusão é relativa e não absoluta, que ela é para ser geral, de fato, mas num sentido moral e não físico ou matemático. Assim, Santo Agostinho (Epist. cxcix; P.L., XXXIII, 922, 923) explica que as nações que não faziam parte do Império Romano já tinham se unido à Igreja, que frutificava e crescia por todo o mundo. Mas ele acrescenta que sempre haverá necessidade e lugar onde ela possa crescer; e, depois de citar Rm 10,14, continua:
"Naquelas nações, portanto, entre as quais a Igreja ainda não é conhecida, ela ainda deve achar um lugar [in quibus ergo gentibus nondum est ecclesia, oportet ut sit], não, de fato, de uma maneira que todos que estão ali venham a se tornar crentes; porque são todas as nações que foram prometidas, não todos os homens de todas as nações... De outra forma, como se cumpriria a profecia 'Vós serei odiados por todos por causa do meu nome', a menos que em todas as nações haja aqueles que odeiam bem como aqueles que são odiados?"
Por último, dever-se-ia dizer que entre os confusos pensadores da comunhão anglicana, bem como entre alguns representantes das opiniões modernistas, uma interpretação da Catolicidade da Igreja tem entrado em voga, tendo elo com algo que também entrou em nossa observação. Começando com a concepção familiar em certas expressões como "um homem de gostos católicos" [uma expressão não incomum no inglês, pelo visto], significando um homem que não exclui nenhum interesse racional de suas simpatias, estes escritores persuadir-nos-iam de que uma igreja católica ou seria ou deveria significar uma igreja dotada de uma compreensão ilimitada, isto é, que está preparada para acolher e assimilar todas as opiniões honestamente mantidas, ainda que contraditórias. Para responder a isto deve-se dizer que esta ideia é absolutamente alheia à conotação da expressão Igreja Católica como podemos encontrar nos escritos dos Padres. Tomar um termo consagrado por séculos de uso e dar-lhe um significado novo, do qual aqueles que tiveram a palavra nos lábios, por gerações, jamais sonharam, é, para dizer o mínimo, extremamente enganoso. Se esta compreensão e elasticidade de crença são consideradas uma qualidade desejável, todavia se deixe que adquira um novo nome por si só, mas é desonesto dar a impressão, seja ao ignorante como ao crédulo, de que esta é a ideia que os homens devotos do passado estiveram buscando às apalpadelas, e que foi dado aos pensadores religiosos do nosso tempo abstrair do nome católico o seu real e verdadeiro significado. Tão longe da ideia de uma substância absorvente e nebulosa, sumindo imperceptivelmente dentro dos meios que a cercam, a concepção dos Padres era que a Igreja Católica foi aparada pelas linhas mais bem definidas, diferenciando-se de tudo o que restava fora dela. Sua função primária, também podemos dizer, era colocar-se em aguda oposição a tudo que ameaçasse seu princípio vital de unidade e estabilidade. É verdade que às vezes os escritores patrísticos fizeram um jogo com a palavra católica, e que desenvolveram sua sugestividade etimológica com um olhar para a erudição ou para a edificação, mas a única conotação em que insistiram como objeto de muita importância foi a ideia da difusão por todo o mundo. Santo Agostinho, de fato, em sua carta a Vicêncio (Ep. xciii, em "Corpus Scrip. Eccles. Lat.", XXXIV, p. 468) reclama que ele não argumenta meramente a partir do nome. "Eu não considero", declara equivalentemente, "que a Igreja deva se espalhar pelo mundo simplesmente porque é chamada de Católica. Eu baseio minha prova da sua difusão nas promessas de Deus e nos oráculos da Sagrada Escritura". Mas o santo ao mesmo tempo esclarece que a sugestão, de que a Igreja se chamava Católica porque observava todos os mandamentos de Deus e administrava todos os sacramentos, era originária dos donatistas, e dá a entender que não concordava com esta visão. Aqui também a demonstração da unidade da Igreja como construída sobre uma base dogmática é fundamental. (...) O bispo anglicano de Carlisle, num artigo publicado no Hibbert Journal, edição de janeiro de 1908, e intitulado "A Igreja Católica, o que é?", parece levar aos últimos extremos a fórmula moderna: Católico = compreensivo. No lugar de qualquer princípio de coesão, apenas isto, que a Igreja Católica é a que nada proíbe. O bispo a concebe, aparentemente, como uma instituição investida por Cristo com um ilimitado poder para acrescentar em números, mas nenhum para expulsar. Deve ser certamente claro que o senso comum prático não pronuncia contra tal concepção nada menos forte que as palavras claras do Senhor no Evangelho ou a consistente atitude dos Padres.

Fonte: Thurston, Herbert. "Catholic." The Catholic Encyclopedia. Vol. 3. New York: Robert Appleton Company, 1908. Disponível em http://www.newadvent.org/cathen/03449a.htm.

Por Luís Augusto - membro da ARS

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