Os passos da reforma litúrgica pós-conciliar - Apresentação da Declaração sobre as iniciativas litúrgicas arbitrárias

Pax et bonum!

Neste período entre os anos de 1966 e 1967, reconhecidamente marcado por experiências litúrgicas não autorizadas e além dos limites, a Santa Sé, em seus dois órgãos responsáveis pela reforma litúrgica, emite uma Declaração. Um dos personagens principais dos trabalhos da reforma, o ainda Pe. Annibale Bugnini, faz a apresentação da Declaração, esclarecendo ou complementando, de certa forma, as palavras ali colocadas.
Em breve seguirão duas postagens da série:
- A tradução da alocução do papa Paulo VI aos membros do Consilium (abril/1967), na qual ele também falará das iniciativas arbitrárias, da dessacralização e onde também reafirmará sua confiança nos trabalhos oficiais.
- A tradução da segunda instrução de implementação da Constituição Sacrosanctum Concilium, a Instrução Tres abhinc annos (maio/1967), na qual constam mudanças que teoricamente foram experimentadas a partir de 1965. Assim, teremos, de alguma maneira, a segunda forma do Missal após o Concílio.
Nesta apresentação, Pe. Bugnini cita que a obra da reforma inclui também "uma verdadeira nova criação", deixando claro que a Missa e as demais celebrações litúrgicas não seriam apenas simplificadas.

As iniciativas litúrgicas arbitrárias
Conferência de imprensa do Pe. Bugnini

O número de fevereiro de 1967 do Notitiae (órgão do "Consilium" de liturgia) publicou a declaração da Congregação dos Ritos e do "Consilium" de liturgia sobre as iniciativas arbitrárias, seguida da seguinte conferência de imprensa pela qual o Pe. Annibale Bugnini, CM, subsecretário da Congregação dos Ritos e secretário do "Consilium" de liturgia, apresentou a Declaração à imprensa em 04/01/1967.

O pano de fundo da Declaração

1. Primeiramente, três observações fundamentais:

A liturgia está num período de transição

a) A primeira, é que a liturgia está em pleno período de transição. O Concílio aprovou uma Constituição litúrgica que, para ser realizada plenamente, demanda tempo, reflexão e estudo. Uma reforma do culto católico não pode se fazer em um dia, nem em um mês, nem em um ano. Ela não se faz somente dando retoques a uma obra de arte de grande valor, mas às vezes é preciso dar novas estruturas a ritos inteiros. Faz-se, na verdade, uma restauração fundamental, eu diria que quase uma revisão e, para certos pontos, uma verdadeira nova criação.
Por que este trabalho fundamental?
Porque a imagem da liturgia dada pelo Concílio é completamente diferente daquela que era antes, isto é, sobretudo rubricista, formalista, centralizadora. Atualmente, a liturgia exprime-se vigorosamente nos aspectos dogmático, bíblico, pastoral; ela busca ser inteligível na palavra, no símbolo, no gesto, no sinal; ela esforça-se por se adaptar à mentalidade, ao gênio, às aspirações e às exigências de cada pessoa para penetrar na sua intimidade e para aí levar o Cristo. Sobre o plano jurídico, sua sorte está em boa parte entre as mãos das Conferências episcopais, às vezes dos bispos, e até mesmo dos padres celebrantes. Se a liturgia restaurada - que alguns chamam depreciativamente de liturgia "nova" - não atingir este fim, o trabalho de restauração seria falido. Não trabalhamos para os museus, mas queremos uma liturgia viva para os homens vivos de nosso tempo.

Uma liturgia que seja, ao mesmo tempo, fiel à tradição e adaptada ao nosso tempo

b) Segunda consideração: já falei de restauração e de nova criação. É claro que as duas coisas devem harmonizar-se de forma feliz para que o resultado possa ainda ser considerado como a liturgia que a Igreja criou no curso dos séculos na mais pura tradição e, ao mesmo tempo, uma liturgia adaptada ao nosso tempo.
O primeiro elemento é fundamental e indispensável para o segundo: construiremos sobre bases de granito e não de areia movediça, porque no ato do culto, é a sua fé e, de toda forma, ela própria que a Igreja exprimiu.
Mas quais são as partes verdadeiramente autênticas que formam o coração sólido e indestrutível desta majestosa árvore que exprime a fé permanente da Igreja e ao mesmo tempo é capaz de dar ramos novos para alimentar a fé hoje em dia?
Aí reside a arte, o segredo, o delicado e grave trabalho dos 250 experts que trabalham no "Consilium".

A impaciência que quer queimar etapas

c) Ainda uma observação. Não se trata de um trabalho fácil, restaurar a liturgia; no mais, num certo sentido, o tempo trabalha contra nós. Todo o mundo tem em mãos a Constituição sobre a Liturgia: o movimento litúrgico, que depois de meio século trabalha incansavelmente, criou no clero e em numerosos fiéis um interesse e mesmo certa cultura litúrgica. É sem dúvida um mérito. Três anos se passaram, no decorrer dos quais se viu algumas aplicações interessantes mas raras da Constituição.
Daí a tentação em certas regiões e em certos meios de queimar as etapas e de voar com as próprias asas.
Alguns elementos, positivos ou negativos, comuns hoje em dia a todos os meios do mundo moderno, inclusive o mundo eclesiástico, encorajam a ultrapassar aparentes barreiras e um imobilismo muito facilmente deplorável.

As "refeições eucarísticas"

2. Tal é o pano de fundo da Declaração publicada anteriormente. Qual é seu alcance na letra e no espírito? Antes disso, por que uma Declaração à qual os dois organismos encarregados da liturgia na Cúria romana dão tão grande solenidade? Porque os fenômenos e os fatos divulgados de forma espetacular em certas publicações existem um pouco por toda parte ao menos em germes que poderiam amadurecer e se desenvolver. A Declaração, então, é um pouco de sinal vermelho, tanto para o clero como para os fiéis, para indicar às boas intenções e às iniciativas mais audazes que a via não está livre.
Dito isto, devo ainda acrescentar que em tudo que foi publicado há uma certa confusão que precisa de esclarecimentos. Fale-se de "refeições" eucarísticas celebradas em casas privadas. Estamos evidentemente perante um caso limite.
1. Porque, para a celebração eucarística e em geral para os atos do culto, Deus quis e a Igreja reservou um espaço, um lugar, um altar consagrado por um rito solene, para acolher a comunidade cristã, templo vivo de Deus, para oferecer a Deus um sacrifício de louvor. Em casos muito excepcionais e em circunstâncias especiais, pode-se celebrar a Missa em casas privadas, em usinas ao ar livre, etc., mas estes casos não podem ser citados como exemplo.
2. Uma coisa é a eucaristia na qual o Cristo está presente sob as espécies do pão e do vinho, outra coisa é uma refeição familiar, um banquete ou, como diziam os antigos, um ágape. Jamais a eucaristia foi uma refeição ordinária. O Cristo a instituiu no curso de uma refeição pascal. Nos primeiros tempos da Igreja, associou-se às vezes a celebração eucarística ao ágape. Em seguida, deu-se conta dos inconvenientes desta associação e se sentiu a necessidade de distinguir o ágape da celebração eucarística. No séc. III, as dois coisas não se encontravam mais unidas em nenhuma parte do mundo cristão. E a Igreja conservou esta disciplina até atualmente. Querer voltar a uma forma de culto abandonada depois de dezesseis séculos seria um anacronismo que não encontra nenhuma justificativa doutrinal ou pastoral.
E há uma terceira consideração que não pode ser desvalorizada. A celebração eucarística em casas privadas minimizaria e privaria de seu sentido a concepção de Igreja como reunião do povo santo de Deus em toda a sua variedade, multiplicidade e unidade. Reduzir o ato de culto, essencialmente comunitário, a grupos minúsculos, enfraqueceria o senso universal da fé e da caridade para com "todos os homens".

Ritos e ornamentos incomuns

3. A declaração fala "missas com ritos, vestimentas e formulários incomuns e arbitrários".
Ninguém ignora que o cerimonial litúrgico é minuciosamente fixado em leis - as rubricas - que somente a Igreja tem o direito de determinar, e, caso necessário, de alterar. Eis aí o quadro esplêndido em que a Igreja consagrou a joia recebida de Cristo, o quadro que ao mesmo tempo guarda e revela o valor e o mistério desta joia. Rebaixar ao nível humano tudo o que toca o sagrado, quer dizer, que toca o mistério, não aproxima de Deus, mas pode ser que afaste. Eis por que a Igreja não quer que o sagrado seja confundido com o profano, o sobrenatural com o terrestre.

A música sacra

4. Algo que igualmente se diz do canto que é executado nestas celebrações é que se define como "profano e mundano". Creio que o primeiro adjetivo se refira à natureza, o segundo ao modo de execução.
Poder-se-ia dizer muita coisa sobre este assunto que interessa tanto à opinião pública, mas serei breve.
São Pio X, que em primeiro lugar ocupou-se do canto como elemento pastoral, exclui em seu célebre motu proprio "Tra le sollecitudini" (de 1903) os cantos "lascivos" e os instrumentos "ruidosos e ligeiros". É necessário admitir que se fala de dois elementos difíceis de precisar. Para as palavras, reconhece-se facilmente o estilo quando se cede às bizarrices e à moda do tempo.
Mas e quanto à melodia? Cada época tem seus gostos, suas preferências e suas expressões. A música também, como a arte em geral, leva a marca de seu tempo revela a sua época.
E quanto aos instrumentos? São Pio X deu uma indicação: são excluídos do lugar sagrado os instrumentos "ruidosos e ligeiros". É claro que ele teve presente ao espírito a cultura ocidental da Igreja latina. O critério ainda é válido hoje  dia? Em parte, somente. Isto porque a Constituição sobre a Liturgia, no artigo 120, acrescenta depois de ter recomendado os instrumentos tradicionais: "Podem utilizar-se no culto divino outros instrumentos, segundo o parecer e com o consentimento da autoridade territorial competente, conforme o estabelecido nos art. 22 § 2, 37 e 40, contanto que esses instrumentos estejam adaptados ou sejam adaptáveis ao uso sacro, não desdigam da dignidade do templo e favoreçam realmente a edificação dos fiéis".
É sobre esta base que se deve julgar as novas formas musicais. A Declaração afirma que, no meio de certos casos, não são respeitadas as três condições: elas são profanas, indignas do lugar sagrado; elas são mundanas, isto é, seu modo de execução exige ou ao menos parece exigir movimentos, gestos, atitudes indignas de uma ação sagrada.
Fecha-se assim a porta a todo eventual desenvolvimento da música moderna com percussão nas ações sagradas? Não se pode deduzi-lo do texto da Declaração. Mas não é difícil enxergar que um grande trabalho de sacralização seria necessário antes de que pudesse legitimamente cruzar o limiar do santuário.

As experiências litúrgicas

5. A Declaração fala do motivo do aggiornamento pastoral.
É o motivo que revela, e de certo modo justifica, a intenção correta de todos os que se lançam nas iniciativas litúrgicas pessoais e arbitrárias. Alguém quis favorecer a prática cristã, remediar algum descontentamento, algum distanciamento progressivo - às vezes bem acentuado - da prática religiosa. Mas tanto aqui como em outros lugares, o fim não justifica os meios. E os meios escolhidos têm sido realmente pouco esclarecidos. É em vão repetir que a liturgia é hierárquica, ou seja, que a regulamentação da liturgia não pode ser assunto de todos, pertence à Igreja. Toda tentativa individualista "é contrária ao sentido eclesial da liturgia e prejudica a unidade e a dignidade do povo de Deus". Ademais, surpreende, atrapalha e desorienta os fiéis.
Fala-se às vezes de experiências num sentido completamente errôneo e contrário àquele indicado pelo Concílio.
Raciocina-se da seguinte maneira: os indivíduos e os grupos privados fazem as experiências litúrgicas, a partir das quais a hierarquia escolherá em seguida as que correspondem melhor às exigências do povo.
Todo o mundo vê que o perigo da desordem, da anarquia e das reações contrárias se encontra em germe neste princípio. A Constituição fala duas vezes das experiências, no n. 40 e no n. 44. No n. 40, trata-se de experiências preliminares à adaptação de certos ritos que a autoridade eclesiástica territorial competente (a Conferência Episcopal) permitirá e dirigirá "em alguns grupos que sejam aptos para isso e por um tempo determinado", depois de ter recebido a autorização da Sé Apostólica. No n. 44, trata-se de experiências promovidas pela autoridade eclesiástica competente (a Conferência Episcopal), em vista de adaptação a serem submetidas à Santa Sé, ou seja, as adaptações de que fala o art. 40. Segundo a Constituição, toda "experiência" litúrgica é de domínio da hierarquia (Conferências Episcopais, Santa Sé). Toda outra experiência que não segue esta via é ilegal.
Toda arbitrariedade atenta contra a Constituição, a Liturgia e o sentido da Igreja.

O papel das Conferências Episcopais

6. Enfim, tenho que enfatizar o convite de velar pelo movimento litúrgico e de o promover, que foi dirigido aos Ordinários.
Duas obrigações, por consequência.
A Constituição, com efeito, criou uma nova situação jurídica entre o centro e a periferia, entre, de um lado, a Santa Sé e os organismos de governo e, do outro, os bispos. Estes não são mais, como antes do Concílio, simples executores fiéis dos dispositivos dados pela Santa Sé, mas devem promover a ação litúrgica no sentido querido pela Constituição, ter as iniciativas no quadro de sua competência, organizar as Comissões litúrgicas diocesanas, regionais, nacionais, internacionais, preparar as traduções dos textos litúrgicos, estudar e propor adaptações e experiências, etc. Eles têm um imenso domínio de trabalho e uma grande responsabilidade.
Eles devem aproveitar. Às vezes, os organismos de direção dão prova de um imobilismo ou de uma lentidão que, por consequência, geram as iniciativas pessoais arbitrárias que ameaçam o verdadeiro movimento litúrgico e que são prejudiciais a todos.
Por amor da verdade, devo acrescentar que, até onde sei, as Conferências Episcopais e as Comissões litúrgicas nacionais, às quais em última análise dirige-se o convite, conscientizam-se gradualmente de seus deveres e das imensas possibilidades que lhes são dadas. Na grande maioria dos casos, as Comissões trabalham seriamente em prol da preparação dos textos e da catequese adaptada ao povo.
Avança-se com dificuldade, mas também com muita esperança, e sobretudo com muito amor, para que a liturgia torne-se novamente, como desejou São Pio X, a primeira e indispensável fonte do verdadeiro espírito cristão.


Tradução livre por Luís Augusto - membro da ARS

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