Os passos da reforma litúrgica pós-conciliar - Sacrificium Laudis: o abandono do latim e a tristeza de Paulo VI

Pax et bonum!

Iniciaríamos a publicação de documentos do ano de 1967 quando nos damos conta de que tínhamos ignorado um importante e revelador documento de meados de 1966. Trata-se da Carta Apostólica Sacrificium Laudis, do Papa Paulo VI, "sobre a língua latina a ser usada no Ofício Litúrgico coral por parte dos religiosos obrigados ao coro", quem entendemos ser sobretudo os monges.
Pois bem, havíamos dito que o ano de 1966 apresentou, fora do contexto das experiências oficiais e autorizadas, um grande número de experiências arbitrárias. Paulo VI, o Cardeal Lercaro e o Pe. Bugnini levantam a voz contra o que acontecia. Mas ainda assim essas vozes pareciam soar distante dos casos concretos, provavelmente à sombra da conivência dos bispos dos lugares em questão.
Nesta Carta, Paulo VI, abalado e triste pelos pedidos de mudança do latim e do gregoriano, em prol do vernáculo e dos cantos modernos em voga, pergunta: "De onde saiu  e porque se difundiu, esta mentalidade e este fastio desconhecidos no passado?" Todavia, convoca todos à humilde obediência, recordando que, se as línguas vernáculas foram introduzidas para bem do povo, os religiosos têm o imperioso dever de salvaguardar "a tradicional dignidade, a beleza, e a gravidade do Ofício coral, seja na língua como no canto".
Obs.: Os grifos são nossos. Algumas correções e adaptações foram feitas apenas para melhor leitura aos brasileiros.

***

SACRIFICIUM LAUDIS
CARTA APOSTÓLICA

Aos Chefes das Ordens Religiosas,
sobre a língua latina a ser usada no Ofício Litúrgico coral
por parte dos religiosos obrigados ao coro.

Diletos filhos,
saudação e Bênção Apostólica.

As vossas Famílias religiosas, devotadas ao serviço de Deus, sempre tiveram em grande consideração, numa tradição jamais interrompida, o Sacrifício de louvor oferecido pelos lábios dos que anunciam o Senhor, no canto dos salmos e dos hinos, com os quais são santificadas pela piedade religiosa as horas, os dias e os tempos do ano, estando no centro de tudo o Sacrifício Eucarístico como um sol esplendoroso que tudo a si atrai. Com efeito, justamente se pensava que nada deveria ser anteposto a uma tão santa prática religiosa. Compreende-se com facilidade quanta glória de tal resulte para o Criador de todas as coisas, e quão grande a utilidade para a Igreja. Com esta forma de oração, fixa e mantida perene através dos séculos, haveis ensinado que o culto divino é de suma importância para a humana convivência.
Das cartas dalguns de vós e das muitas missivas enviadas de várias partes chegamos ao conhecimento que os cenóbios ou as províncias de vós dependentes - falamos somente daqueles de rito Latino - adotaram diferente modos de celebrar a divina Liturgia: alguns são muito contrários à língua Latina, outros no Ofício coral vão pedindo o uso das línguas nacionais, ou querem até que o chamado canto Gregoriano seja substituído cá e lá com os cânticos hoje em voga; outros reclamam mesmo a abolição da própria língua latina.
Devemos confessar que tais pedidos Nos abalaram não levemente e nos entristeceram não pouco; e levaram-nos a perguntar de onde saiu  e porque se difundiu, esta mentalidade e este fastio desconhecidos no passado.
Certamente vos é notório, nem podeis duvidar, o quanto Nós vos amamos, nem às vossas Famílias religiosas, o quanto as estimamos. Frequentemente são para Nós causa de admiração os testemunhos de insigne piedade e os monumentos de refinado engenho, que [a todos] enobrecem. Conservaremos a Nossa alegria se surgir qualquer possibilidade, desde que lícita e conveniente, de favorecer, e de aceder aos vossos pedidos, para melhorar a situação.
Mas, quanto dissemos acima, vem depois de o Concílio Ecumênico Vaticano II se ter pronunciado sobre esta matéria de modo meditado e solene (Cf. CONC. VAT. П, Const. Sacrosanctum Concilium, n. 101 § 1) e depois de terem sido emanadas normas precisas com sucessivas Instruções; na primeira Instrução, para a exata aplicação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, emanada a 26 de Setembro de 1964, estabelece-se o seguinte: "Na récita do Ofício Divino em coro, os clérigos usem a língua latina" (n. 85); e na outra, que trata da língua a usar na celebração do Ofício e da Missa "conventuais", "nas comunidades" próximas às Religiosas, emanada a 23 de Novembro de 1965, aquela disposição ficou confirmada e também tendo em conta a utilidade espiritual dos fiéis e das particulares condições que subsistem nos países de missões. Portanto, enquanto não se determinar em sentido diferente por razões legítimas, estas leis permanecem em vigor e requerem obediência, na qual devem sobressair principalmente os religiosos, filhos caríssimos da Igreja.
Com efeito, não se trata somente de conservar a língua latina no Ofício coral - indubitavelmente digna, nem seria para menos que a guardássemos com cuidado, sendo na Igreja Latina fonte fecundíssima de civilidade cristã e riquíssimo tesouro de piedade -, mas, também de defender indene a qualidade, a beleza e o originário vigor de tais orações e de tais cantos: trata-se, de fato, do Ofício coral, expresso "com as vozes da Igreja que docemente canta" (Cf St.º AGOSTINHO, Confissões, 9, 6: PL 32, 769), e que os vossos fundadores e mestres, e ademais Santos no Céu, luminárias das vossas Famílias religiosas, vos transmitiram. Não são de menosprezar as tradições dos que vos antecederam e ao longo dos séculos construíram a vossa glória. Este maneira de recitar o Ofício divino em coro foi uma das principais razões para a solidez e o feliz crescimento das vossas Famílias. É portanto de espantar que, surgindo com inesperada excitação, alguns pareçam ter negligenciado estas motivações.
Que língua, ou que cânticos vos parece que possam na presente situação substituir as formas de piedade católica que usastes até agora? Haveis de refletir bem, para que as coisas não piorem depois de renegardes a esta gloriosa herança. Porquanto vos é de temer que o Ofício coral seja reduzido a uma recitação disforme, cujas pobreza e monotonia vós sereis certamente os primeiros a notar. Surge ainda uma outra interrogação: os homens desejosos de sentir os valores sagrados entrarão à mesma, e em tão grande número, nos vossos templos, se não ressoar em vós a piedade antiga e a nativa língua daquelas orações, unidas a um canto pleno de gravidade e de beleza? Pedimos portanto a todos os interessados que ponderem bem o que se perderia, e que não deixem secar a fonte que até hoje brotou abundantemente. Sem dúvida que a língua latina cria algumas dificuldades, talvez não leves, aos novatos da vossa sagrada milícia. Mas estas dificuldades, como sabeis, não são tais que não se possam superar e vencer, sobretudo entre vós que, longe dos afã e estrépito do mundo, vos podeis dedicar mais facilmente ao estudo. De resto, aquelas preces repletas de antiga grandeza e nobre majestade continuarão a atrair até vós os jovens chamados à herança do Senhor; de contrário, uma vez eliminado o coro em questão, que supera os confins das Nações e está dotado de admirável força espiritual, e a melodia que flui do profundo da alma, onde reside a fé e arde a caridade, ou seja o canto gregoriano, sereis como uma vela apagada que já não mais ilumina, e não mais atrai a si os olhos e as mentes dos homens.
Seja como for, filhos caríssimos, os pedidos dos quais falamos acima referem-se a uma realidade tão grave que neste momento não Nos é possível de aceder, anulando as normas do Concílio e as Instruções mencionadas. Exortamo-vos portanto que calorosamente pondereis bem sobre todos os aspectos desta questão tão complexa. Pela benevolência com que vos envolvemos, e pela boa estima com que vos acompanhamos, não queremos permitir aquilo que poderia ser causa de uma queda, para pior, de não breve malefício e decerto de mal-estar e tristeza para toda a Igreja. Permiti-Nos, ainda que contra a vossa vontade, que defendamos a vossa causa. A Igreja, que por razões de índole pastoral, isto é, para o bem do povo que não sabe latim, introduziu as línguas nacionais na sagrada Liturgia, dá-vos o mandato de proteger a tradicional dignidade, a beleza, e a gravidade do Ofício coral, seja na língua como no canto.
Assim, com um coração sincero e dócil, sede obedientes às prescrições que não surgiram por um amor exagerado aos modos antigos, mas propostas antes pela caridade paterna que temos por vós e aconselhadas pelo zelo para com o culto divino.
Enfim, concedemo-vos de coração no Senhor a vós e aos vossos religiosos a Bênção Apostólica, propiciadora dos dons celestes e testemunha da boa disposição do nosso ânimo.
Dada em Roma, junto a S. Pedro, a 15 de Agosto do ano de 1966, festa da Assunção da Virgem Maria, quarto do Nosso Pontificado.

PAULO PP. VI

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